Da capa
para dentro do livro
estratégias para enredar
o leitor na história...
Peter O'Sagae
Mestre em Letras pela
Universidade de São Paulo (USP)
Universidade de São Paulo (USP)
Tem coisas que descobrimos aos poucos — e isso é bom, porque é garantia que vamos continuar aprendendo... mas tem coisas que aprendemos tão rapidamente que até mesmo se torna complicado para descobrir o que fizemos para fazer tudo o que fazemos! E com a leitura também acontece assim. Um dos objetivos da nossa oficina é, então, tentar driblar o tempo, congelá-lo, quem sabe fotografá-lo, para entender o que vai acontecendo quando estamos soltos, lendo um texto. Esse exercício nasceu de minhas experiências, como professor de literatura infantil e de metodologia do ensino de língua portuguesa, e como leitor dessa mesma literatura e de algumas teorias que existem por aí — como um leitor que se sente participativo, responsável pela construção de sentidos de um texto, um co-autor. Quem pensa tudo isso, poeticamente melhor do que eu, é Bartolomeu Campos Queirós (1999):« Fundamental, ao pretender ensinar a leitura, é convocar o homem para tomar da sua palavra. Ter a palavra é, antes de tudo, munir-se para fazer-se menos indecifrável. Ler é cuidar-se, rompendo com as grades do isolamento. Ler é evadir-se com o outro, sem contudo perder-se nas várias faces da palavra. Ler é encantar-se com as diferenças. »Ensinar e aprender a leitura, a gente aprende e ensina toda vez que nos encontramos com a diversidade de textos que existem ou — como educadores — ao promovermos o "abraço" da criança com o texto. Embora ninguém vá suspeitar que os olhares não sejam, aqui, para o próprio texto de literatura para crianças, é bom lembrarmos da variedade existente de textos não literários, às vezes classificados como utilitários: outros textos de circulação social, como o panfleto e o anúncio publicitário de rádio, televisão e revista; a notícia e a reportagem do jornal; tabelas e listas enumerativas; o bilhete, a carta e o ofício das tramas epistolares; receitas e regras de jogos da tipologia instrucional; mais os informativos por natureza, como o verbete do dicionário, de enciclopédia, artigos de revista especializada em um assunto, os velhos didáticos também. São todos textos que se escreve e se lê, que pedem aproximação e um abraço específicos, bem como a literatura. Hoje vivemos sob o signo (e o sonho) do letramento. Vamos pensar leitura enquanto prática de interação através da linguagem, uma construção de sentidos que vai sendo erguida e confirmada, ao longo do próprio processo de descortinar e desvendar o texto — e que seja, de preferência, uma prática de colaboração participativa, um jogo entre adultos e crianças, em sessões de leitura compartilhada. Nessas ocasiões, certas estratégias de leitura entram em ação, pelas mãos, olhos e bocas do professor e do aluno, "denunciando" até mesmo como cada participante fez e faz para alcançar a compreensão do texto... Além de compreender o que diz e como diz o texto, a criança aprende, exercita e revisa suas próprias estratégias de leitura, quando entra na brincadeira. O encontro com o livro, para abraçar a literatura, pode ser pensado e dividido em três momentos, contínuos e sem interrupção: pré-leitura, leitura e pós-leitura, sempre em uma atmosfera afetiva e efetiva — quando nos ocupamos com a formação do leitor — e de nós mesmos. Bem seja, diz Marisa Lajolo (2001) que,« ... como você já sabe, a escola não pode contentar-se com uma leitura mecânica e desestimulante. A escola pode e precisa comprometer-se com muito mais do que isso. Ela pode e precisa comprometer-se com uma leitura abrangente, crítica, inventiva. Só assim estará ensinando seus alunos a usar a leitura e os livros para viver melhor. » De todo esse circuito, nossa oficina enfoca boa parcela de estratégias de leitura, mas concentradas sobre a leitura de capa de livros para crianças — estaremos, assim, refletindo a pré-leitura do texto literário, buscando caminhos e preparando condições para a recepção da literatura.
O que é ler?
Essa é a primeira pergunta-desafio para todos nós educadores/leitores que desejamos conduzir a criança na aventura da leitura. Encontrei uma resposta (aposto que existem outras mais...), na época em que trabalhei junto do Instituto Qualidade no Ensino. Transcrevo, compartilho:« Ler é sempre uma atividade complexa, pois envolve a conjugação de uma grande variedade de ações, admitindo até mesmo a interferência de atividades não propriamente específicas do ato de ler, mas que estão implicadas toda vez que se usa a linguagem. Atividade de conhecimento por excelência e condição para o trabalho intelectual, a leitura é processo de compreensão multi-facetado, multi-dimensionado, envolvendo diversas operações, como: percepção, decodificação e processamento de informações, memória, predição (antecipação), inferência, dedução, evocação, analogia, síntese, análise, avaliação e interpretação. Portanto, saber ler não é apenas conseguir decodificar, "traduzir" automaticamente um conjunto de sinais, mas mobilizar um conjunto de estratégias, fazendo interagir diversos níveis de conhecimento, para construir significados. » Essa definição tem me acompanhado, partindo de um referencial cognitivista de aprendizagem. Estratégias de leitura são ações que os leitores desenvolvem — e, por força do hábito pedagógico que também trago na bagagem, essas ações correspondem aos objetivos a serem alcançados e cumpridos pelas crianças, em termos de habilidades, nas atividades em sala de aula... Porém, que a seriedade da pauta escolar não comprometa o prazer próprio da leitura literária. Ler é fazer, e mais: é fazer-se. Outra vez, a voz de Bartolomeu Campos Queirós (1999) alinhava meus pensamentos, ao afirmar que « A leitura acorda no sujeito dizeres insuspeitados enquanto redimensiona seus entendimentos. » Redimensionar o humano — eis o projeto da leitura! Como administrar as ações, nosso desafio... mas antes de parecer um receituário, rígido em regras, gostaria de oferecer pontos de reflexão sobre a prática de leitura que promovemos na escola.
- Como acompanhamos o aprendizado e o encantamento da criança?
- O quanto permitimos a ela sair da esfera de reprodução da linguagem, esbaldando-se com a alegria de uma razão aventureira, produzindo sentidos, por entre textos e livros?
- De que maneira, laçar as vozes dos leitores co-autores para que todos sejam ouvidos e envolvidos pela leitura e pelos diálogos que se articulam, antes, durante e depois dos encontros com o texto?
É importante que o professor leitor e formador de leitores instrua, oriente e dirija uma sessão de leitura compartilhada; que se sinta livre e seguro ao explicar como conseguiu construir sua própria leitura, apontando as pistas que foi juntando e, quanto mais solicitado, demonstrando e exemplificando o seu jeito de jogar com o texto — bem como saiba dar oportunidade para a criança exercitar suas estratégias de interpretação e falar sobre elas --, ao monitorar as jogadas e passes livres dos alunos, negociando os sentidos, conduzindo breves atividades de releitura para a confirmação do que foi anteriormente estimado. É essencial, entre os participantes, circular uma variedade de perguntas — questionamento e não questionário: que a dúvida do adulto seja a resposta da criança, e vice-versa, fazendo viver e reviver uma elaboração criativa de abordagens e aproximações com o texto...
O livro na capa?
Já dissemos que a leitura da capa do livro é uma pré-leitura do texto e, por isso mesmo, não é uma atividade que tenha fim em si mesma, nem poderá substituir a leitura literária propriamente dita. Também não é um exercício a ser realizado a todo momento, com todos os livros que serão divididos em uma leitura compartilhada. Se favorece a aprendizagem da criança, quanto ao domínio das estratégias de leitura, estas ações reciprocamente deverão favorecer outras aprendizagens textuais. Vamos pensar a leitura de capa como missão de espionagem, onde o leitor/espião busca intuir relações de coerência do texto que virá. Assim, o título de um livro e a imagem da capa passam a compor um jogo — a leitura articula-se no desvelamento de senhas verbais, pistas visuais... Nesse processo de interação com o objeto-livro, abre-se um horizonte de expectativas em relação à história que vamos encontrar logo mais... de tal modo, a leitura de capa exige um olhar desperto e inquieto, dado à própria fantasia e raciocínio lógicos. É, por isso, um exercício de percepção, curiosidade, imaginação sobre o material da capa - onde o leitor não pode trapacear consigo mesmo, mas permitir que dúvidas, perguntas, certezas e apostas surjam, sem ceder à vontade de entrar no livro apressadamente. As pistas, isoladamente, já compõe um conjunto de significados que, ao serem somados, justapostos, confrontados pela fricção das possibilidades combinatórias, começam a produzir razões cintilantes, descobertas pela intuição, à espera de confirmação. Título e imagem dialogam. Mas podem ser segmentados, analisados em separado, em um momento, para serem sobrepostos, em outro. O título é nossa senha verbal, poderá ajudar tanto a revelar a imagem que se vê, quanto a história que se desconhece, até então. Operar sobre ele é proceder uma rápida e ágil atividade de análise lingüística ou de epilinguagem, quando se busca interpretar o significado mais literal ou sua ambigüidade, o quanto há de sentido fechado ou traços incompletos para o leitor preencher, atualizá-lo, correlacioná-los com outros títulos, textos, experiências vividas. A imagem, igualmente, pode estar pronta e acabada, em plena consonância com o título, quer reproduzindo-o sem espaços generosos para uma visitação, quer tentando explicitá-lo como sempre ocorre quando é intencional levar o leitor a um gesto associativo direto, entre o texto e a imagem. Bem melhor, é quando a ilustração da capa, à primeira vista, intriga o leitor, provoca-lhe um estranhamento, seja na esfera da representação, flagrando uma cena incomum, não rotineira, enigmática, prenhe de sugestões, sobre o que acontecera pouco antes, ou de expectativas, sobre o que aconteceria em sua seqüência; seja também em sua natureza plástica, a presença admirável da técnica. Respeitando sempre as características e as configurações de linguagem presentes em cada exemplar da literatura para crianças, é importante que o professor crie condições favoráveis para a criança fazer-aprender-refazer o processo da leitura que se tece... Toda obra, pensada como um todo significativo, sempre revela uma intencionalidade comunicativa e estética — e esta pode vir muito bem expressa em sua capa, sintetizando os principais aspectos da narrativa que o livro transporta, ao mesmo tempo que tenta fisgar o leitor para sua leitura... Mas também deve ser dito: nem toda capa produz boas leituras — coisa que não depende totalmente do livro, nem compromete a qualidade do texto que contém, nem a invenção do ilustrador. Descobrir a boa leitura ou as possibilidades dela acontecer é outro jogo: ao selecionar uma obra, o professor deve ser apenas leitor, pesquisador e espião. Que o jogo-leitura de capa seja uma aventura rumo à obra, uma leitura a quatro mãos — ou dez, treze, vinte mãos, olhos, bocas... que faça brotar cumplicidades, leituras em co-autoria. Esta seria a conduta e a condição para que todos, crianças e adultos, desenvolvam habilidades e estratégias de leitura, como saber inferir relações, levantar hipóteses, antecipar acontecimentos, evocar outros textos de sua bagagem literária, explicitar as marcas e deduzir o obscuro, intuir sentidos, entrelaçar conhecimentos... adiante, o projeto humano: o leitor proficiente.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
:: Comprehension. In: THE PARTNERSHIP FOR READING: bringing scientif evidence to learning. Questions about reading instruction. Capturado em 13 de out. 2002. Online. Disponível na Internet. :: CUNHA, Maria Zilda da. Matrizes de linguagem e pensamento na literatura infantil e juvenil: a tessitura dos signos em obras de Angela Lago e Octaviano Correia. São Paulo, 2002. Tese (Doutorado em Letras) - ECLLP, FFLCH/USP, 2002. :: INSTITUTO QUALIDADE NO ENSINO. Kit Escola. Sessão 18 - Processos de leitura: 1a à 4a série. Formação Continuada em Serviço de Língua Portuguesa. São Paulo: IQE. :: GÓES, Lúcia Pimentel. Olhar de descoberta. São Paulo: Mercuryo, 1996. :: LAJOLO, Marisa et al. O professor - leitor e formador de leitores. In: BRASIL. Secretaria da Educação Fundamental. Histórias e histórias: guia do usuário do Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE 99: literatura infanto-juvenil. Brasília: MEC, 2001. :: PALO, Maria José, OLIVEIRA, Maria Rosa. Literatura infantil: voz de criança. 3.ed. São Paulo: Ática, 1998. :: QUEIRÓS, Bartolomeu Campos. O livro é passaporte, é bilhete de partida. In: PRADO, Jason, CONDINI, Paulo (orgs.). A formação do leitor: pontos de vista. Rio de Janeiro: Argus, 1999. Capturado em 20 de set. 1999. Online. Disponível na Internet. :: RODARI, Gianni. Gramática da fantasia. trad. Antonio Negrini. São Paulo: Summus, 1982. :: SANTAELLA, Lúcia. A leitura fora do livro. In: POESIA INTERSIGNOS. Capturado em 20 de set. 1999. Online. Disponível na Internet. :: SOARES, Magda Becker. Letramento/alfabetismo. Presença Pedagógica, Belo Horizonte, n. 10, jul. 1996.
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Dobras da Leitura Ano IV - N.º 14 - mai.jun. 2003 |